domingo, 12 de outubro de 2008

Quindins na portaria



Estava lendo o novo livro do Paulo Hecker Filho, Fidelidades, onde, numa de suas prosas poéticas, ele conta que, antigamente, deixava bilhetes, livros e quindins na portaria do prédio de Mário Quintana: "Para estar ao lado sem pesar com a presença". Há outras histórias e poemas interessantes no livro, mas me detive nesta frase porque não pesar aos outros com nossa presença é um raro estalo de sensibilidade. Para a maioria das pessoas, isso que chamo de um raro estalo de sensibilidade tem outro nome: frescura. Afinal, todo mundo gosta de carinho, todo mundo quer ser visitado, ninguém pesa com sua presença num mundo já tão individualista e solitário.Ah, pesa. Até mesmo uma relação íntima exige certos cuidados. Eu bato na porta antes de entrar no quarto das minhas filhas e na de meu próprio quarto, se sei que está ocupado.Eu pergunto para minha mãe se ela está livre antes de prosseguir com uma conversa por telefone.Eu não faço visitas inesperadas a ninguém, a não ser em caso de urgência, mas até minhas urgências tive a sorte de que fossem delicadas.Pessoas não ficam sentadas em seus sofás aguardando a chegada do Messias, o que dirá a do vizinho.Pessoas estão jantando.Pessoas estão preocupadas.Pessoas estão com o seu blusão preferido, aquele meio sujo e rasgado, que elas só usam quando ninguém está vendo.Pessoas estão chorando.Pessoas estão assistindo a seu programa de tevê favorito.Pessoas estão se amando.Avise que está a caminho. Frescura, jura? Então tá, frescura, que seja.Adoro e-mails justamente porque são sempre bem-vindos, e posso retribuí-los, sabendo que nada interromperei do lado de lá.Sem falar que encurtam o caminho para a intimidade.Dizemos pelo computador coisas que, face a face, seriam mais trabalhosas.Por não ser ao vivo, perde o caráter afetivo?Nem se discute que o encontro é sagrado.Mas é possível estar ao lado de quem a gente gosta por outros meios.Quando leio um livro indicado por uma amiga, fico mais próxima dela.Quando mando flores, vou junto com o cartão.Já visitei um pequeno lugarejo só para sentir o impacto que uma pessoa querida havia sentido, anos antes. Também é estar junto. Sendo assim, bilhetes, e-mails, livros e quindins na portaria não é distância: é só um outro tipo de abraço.
(Martha Medeiros)

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